quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A Arte de Comer Caranguejos



Férias na Paraíba representam um período de pouco descanso, pois é tanta saudade pra matar que acho até injusto dormir. Ao mesmo tempo, é um período de verdadeiras orgias gastronômicas. Pudera, é mãe, avó e tias querendo me agradar de uma maneira infalível, pelo estômago. Dentre as iguarias, se destacam a buchada de bode, a galinha de capoeira na cabidela (galinha caipira numa espécie de molho pardo), doces e sucos nativos e, claro, caranguejo.

Desde criança eu era acostumado a consumir o crustáceo e ainda considero o caranguejo como uma de minhas comidas prediletas (a primeira é o camarão). Apesar do meu amor pelo bicho, percebi o quanto ele é incomum em outros lugares, como o RS e SP, lugares onde morei. Um episódio memorável foi quando eu tinha uns 13 anos e passava as férias na casa de minha avó em Alagoa Grande-PB. Naquela ocasião eu e minhas irmãs convidamos nossa amiga Calliandra (irmã de meu amigo Alamo) para jantar conosco. Aí, como Calliandra era visita, minha tia serviu primeiro no prato dela um caranguejão dos grandes, provocando um grito inesperado “Aaaaiii! Meu Deus! O que é issoooo?” e a família toda de boca aberta olhou pra ela e disse: “caranguejo”. Como ela havia morado na Espanha, realmente não se lembrava dessa delícia, portanto, não comeu. Em outras ocasiões, colegas do RS comentaram as oportunidades em que comeram caranguejo por ocasião dos congressos de Recife e Aracajú, sendo que boa parte lamentaram a experiência por dois motivos: pouca carne e muito trabalho para comer.

Assim, eis que venho nessa postagem compartilhar um pouco da arte caranguejeira que trago comigo. Pra começar, vamos direto ao habitat natural do caranguejo, o mangue. O mangue é um ambiente de transição, riquíssimo em biodiversidade, sendo que boa parte dos seres que lá vivem (animais e plantas) são endógenos, ou seja, só existem nesse tipo de ambiente. A importância do mangue é indiscutível, pois ele também serve como “berçário” para diversas espécies marinhas. Infelizmente, o crescimento urbano desordenado, a poluição, o desmatamento e a caça e pesca predatória têm ocasionado a degradação do mangue e das espécies que lá residem. Confesso que minha ignorância em relação a esses ambientes é grande, porém tenho interesse em aprender, principalmente por que o diagnóstico ambiental é uma de minhas áreas de atuação. Em relação ao caranguejo, tenho ficado apreensivo, pois como consumidor consciente eu tenho que saber a procedência do animal, se foi caçado respeitando o período de “defeso”, ou seja, períodos em que a captura de caranguejos é suspensa para que os mesmos possam acasalar e reproduzir. No início desse ano o IBAMA definiu diversos períodos de defeso e penalidades à quem caça, compra e vende caranguejos. Achei curioso, pois ao invés do defeso durar um mês inteiro ou algo tipo, dura de 5-6 dias seguidos de intervalos onde a captura é permitida. O problema: como provar que os caranguejos apreendidos não foram capturados durante o defeso? Tenho muito interesse de que a atividade caranguejeira seja seriamente regulamentada com base nos princípios da sustentabilidade, que beneficie e permita o desenvolvimento das populações que dependem dessa atividade, que nos proporcione o suprimento dessa iguaria com qualidade e que, ao mesmo tempo, conserve os mangues, dada a sua importância ambiental.

Como animal, o caranguejo é um ser curioso, tem a cabeça colada ao tórax, duas patolas (garras ou quelíceras) potentes (nos machos uma é maior que a outra), olhos guardados numa loca e anda de lado. Seria um alienígena? Não, apenas um sobrevivente como nós, cuja evolução o trouxe das eras primitivas aos dias atuais.

"Cordas" de caranguejo sendo transportadas do mangue para serem vendidas nas cidades

Aqui na PB, os caranguejos são comercializados vivos, amarrados um ao outro em “cordas”, pendurados numa vara que é apoiada nas costas do vendedor. O preço de cada “corda” de caranguejo custa em média de 5 a 10 reais, bem mais barato que um rabo de lagosta vendido no Zaffari de Porto Alegre por 50 reais. Enfim, com bastante dificuldade, minhas tias conseguiram para mim uma corda com 12 caranguejos que vieram diretamente de Bayeux-PB.

 
Caranguejos prontos para o abate e para a limpeza: dá pena nessa hora, mas fazer o que né...

 
Caranguejos limpos com perfeição: agora é só jogar na panela 

Ao chegar em casa, primeira coisa a se fazer é matar os caranguejos. Parece fácil, mas é nessa hora que muita gente se desespera... como matar o bicho? 1) Jogando-os na água fervente = uma morte horrível, cujo choque faz com que os caranguejos soltem as suas patas (indesejável); 2) Jogando-os no freezer por alguns minutos = uma morte indolor; 3) Facada = morte rápida. Meu pai os mata com a faca. Ao apontar a faca pro caranguejo ele a segura, meu pai o gira com as patas para cima e desfere uma facada no centro do tórax. O caranguejo morre em instantes. Depois, começa o processo de limpeza com água corrente e escovinha para tirar a lama do mangue. A parte de baixo, anexada ao tórax, contém os intestinos do caranguejo e deve ser retirada (é só deslocar e puxar). A segunda limpeza inclui a raspagem dos pêlos das patas do caranguejo com o auxílio de uma faca (a maioria das pessoas e restaurantes ignora essa parte e não tira os pêlos). Após uma segunda lavagem, os caranguejos podem ser cozidos juntamente com tomate, cebola e pimentão picados. Pode ser adicionado o leite de côco natural, que torna o caldo muito mais gostoso.


Nos restaurantes, o caranguejo é servido acompanhado de talheres e alicates especiais. Frescura!!! Para comer um bom caranguejo tudo o que você precisa são mãos firmes, dentes fortes, muita calma nessa hora e muita hora nessa calma. Tenho uma tia que não come caranguejo, ela o “masca”... isso mesmo, ela masca as patas do bicho, suga, e cospe fora o “bagaço”, sem engolir nada. Eu desenvolvi um método peculiar de comer caranguejo o qual considero eficiente por aproveitar ao máximo a iguaria. A descrição é a seguinte:


1 – Retire o caranguejo da panela e coloque-o no prato com as patas para cima para não escorrer o caldo de seu interior (detalhes no item 8). Comece pelas patas menores (que têm menos carne) até chegar às maiores.

2 – Aproveite cada pedaço separadamente.


3 – Morda e retire as extremidades do pedaço, para que ele não fique fechado, nem numa ponta, nem noutra.

4 – Sugue a carne.

5 – A retirada das extremidades faz com que a carne saia completamente ao sugar, deixando o pedaço oco.



6 – As patolas têm alguns detalhes. Após sugar a carne das partes anteriores da patola, retire a pinça móvel e coma a carne que vem colada nela. Com muito cuidado, quebre com seus dentes molares a parte maior da pinça. Não precisa usar tanta força, apenas o suficiente para rachá-la. Abra e coma a carne. Use seu dedo mindinho para acessar a carne aderida no interior da casca.


7 – O cefalotórax ou “cabeça” comumente dita possui caldo e partes comestíveis que concentram o sabor dos temperos adicionados ao cozimento. Ela pode ser consumida de duas maneiras: bebendo o caldo diretamente, pelo buraquinho do cefalotórax; ou separando a cabeça e o tórax, para depois beber o caldo da cabeça. Da segunda maneira o caldo bebido é mais consistente e gostoso.


8 – Se você optar por separar a cabeça do tórax, pode consumir o tórax primeiro. O tórax pode ser separado novamente em duas partes, que possuem na parte de cima pequenas brânquias (acho que são brânquias) com consistência fibrosa sem sabor (pode comer sem medo). A parte interna do tórax possui paredes de quitina (cascas) contendo carne em seu interior. Tem gente que “masca” essa parte e engole. Eu a quebro em várias partes menores e acesso a carne com os dentes e a língua.


9 – A cabeça – última parte a ser consumida. Simplesmente beba o caldo de seu interior (é uma delícia). Algumas partes do interior da cabeça ficam aderidas, você pode acessá-las diretamente com os seus dedos. Tem uma parte bem no centro da cabeça que até pode ser consumida, porém ao ser “estourada” tem um sabor um pouquinho amargo, mas nada desagradável. O ideal é que se retire essa parte interna e consuma todo o resto que tem um sabor sensacional.

10 – O próximo! É impossível comer um só. Caranguejo é bom e faz bem, aprecie sem moderação.


Bom apetite!

Agradeço a Cazuza e Kika pelas fotos e paciência enquanto eu curtia essa degustação, e às tias por terem conseguido os caranguejos apesar da dificuldade em se encontrar caranguejos atualmente.






Quer conhecer um programa de proteção ao caranguejo? Acesse esse site: http://www.puca.org.br/